A administração de medicamentos é uma ação cotidiana nos serviços de saúde, especialmente para os profissionais da enfermagem, que estão na linha de frente do cuidado. No entanto, por trás da aparente rotina, há um tema delicado que poucos têm coragem de abordar abertamente: os erros de medicação.
Quando esses erros acontecem, geralmente ficam restritos às paredes das instituições — omitidos por medo, vergonha ou políticas punitivas. Mas um estudo realizado com enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem atuantes em Unidades Básicas de Saúde (UBS) lançou luz sobre esse tema, revelando os bastidores de falhas que comprometem a segurança do paciente e impactam emocionalmente os profissionais.
O silêncio que esconde um problema grave
Os erros na administração de medicamentos, muitas vezes, não são divulgados pelas equipes por receio de sofrer advertências ou sanções. Esse silêncio, embora compreensível em ambientes onde predomina a cultura da punição, é um obstáculo grave à prevenção e à aprendizagem coletiva.
No estudo analisado, foi solicitado que os profissionais relatassem os erros que já haviam presenciado em seus plantões. Os depoimentos revelaram diversos tipos de falhas, situações reais e as consequências enfrentadas — tanto para os pacientes quanto para os próprios profissionais envolvidos.
Quais tipos de erros os profissionais presenciaram?
Com base nos relatos, os principais erros presenciados durante os plantões foram:
- Administração do medicamento errado (53,8%)
O profissional administra uma medicação diferente daquela prescrita, geralmente por confusão de nomes ou troca de ampolas semelhantes. - Administração de dose errada (23%)
Ocorre por falhas no cálculo, na leitura da prescrição ou na diluição do medicamento. - Administração por via errada (7,6%)
Medicamentos administrados em via não prescrita — por exemplo, usar via intramuscular em vez da via oral — com riscos de reações adversas importantes.
Essas falhas, segundo os relatos, podem ser resultado de falta de atenção, cansaço, pressão por agilidade, prescrições ilegíveis ou falhas de comunicação dentro da equipe.
Como os erros foram detectados?
Os erros relatados foram identificados das seguintes formas:
- Pelo próprio profissional que cometeu o erro (31,8%)
- Por outro membro da equipe (22,7%)
- Pelos sintomas apresentados pelo paciente (22,7%)
A constatação de que nem todos os erros são imediatamente identificados é preocupante. Isso compromete a possibilidade de intervenção precoce e aumenta o risco de complicações clínicas.
Quem são os profissionais mais expostos a erros?
De acordo com o estudo, os erros foram mais frequentes entre:
- Auxiliares de enfermagem (62,5%)
- Auxiliares de farmácia (16,6%)
- Técnicos de enfermagem e enfermeiros (menor percentual)
Esse dado não deve ser interpretado como uma falha de competência, mas sim como uma indicação de exposição, pois são esses profissionais que geralmente executam a administração direta da medicação no cotidiano das UBS.
Quais foram as consequências observadas nos pacientes?
Após os erros, os profissionais relataram duas condutas principais:
- Prestação de cuidados imediatos ao paciente (35%)
- Observação clínica contínua (30%)
Essas ações foram tomadas para minimizar os danos após a falha. Em alguns casos, foi necessária a comunicação com o médico para avaliação de possíveis intervenções corretivas.
Medidas tomadas em relação aos profissionais envolvidos
Em relação aos profissionais que cometeram os erros, foram adotadas as seguintes medidas:
- Orientação verbal ou formal (41,6%)
- Advertência (29,1%)
- Elaboração de relatório (16,6%)
- Encaminhamento para treinamento (12,5%)
Embora a orientação apareça como a medida mais adotada, ainda há predominância de ações punitivas, como advertências, o que pode contribuir para o clima de medo e esconder falhas que deveriam ser discutidas e analisadas.
O que dizem os profissionais sobre esse cenário?
Os depoimentos revelam uma preocupação real com os riscos associados aos erros, mas também evidenciam a falta de apoio institucional para discutir essas falhas de forma aberta e construtiva. Muitos profissionais relataram sentir-se sozinhos ao enfrentar as consequências dos erros — seja no acolhimento emocional, na revisão de condutas ou na aplicação de medidas educativas.
A maioria acredita que os erros poderiam ser evitados se houvesse:
- Supervisão ativa de enfermeiros durante o preparo e a administração;
- Tempo adequado para conferência das medicações;
- Revisão dos protocolos institucionais;
- Treinamentos frequentes e obrigatórios sobre segurança do paciente.
O que os relatos nos ensinam?
A principal lição que os relatos trazem é clara: errar é humano, mas ignorar os erros é perigoso. Cada falha não relatada representa uma oportunidade perdida de melhorar a prática, revisar processos e fortalecer a cultura da segurança.
A administração correta de medicamentos não deve depender apenas da boa vontade ou da atenção isolada de um profissional. Ela precisa ser sustentada por um sistema bem estruturado, com apoio, protocolos claros e cultura de aprendizado.
Caminhos para mudar a realidade
Para transformar esse cenário, é necessário:
- Criar ambientes seguros para o relato de erros, sem julgamentos ou punições imediatas;
- Implementar planos de ação educativos após cada erro relatado;
- Estabelecer protocolos padronizados de administração de medicamentos;
- Estimular a dupla conferência entre profissionais (enfermeiro e técnico, por exemplo);
- Incluir a temática da segurança do paciente nos treinamentos e reuniões de equipe.
A mudança cultural começa quando os erros deixam de ser tratados como falhas individuais e passam a ser vistos como sintomas de sistemas frágeis que precisam ser fortalecidos.